terça-feira, 6 de outubro de 2009

SIMPLESMENTE ANA

Isaac Gregorio

Conheci Ana nos idos de 1985 quando ela era uma jovem senhora de pouco mais de quarenta anos na zona rural de Barra do Choça. Forte, bonita e esbanjando saúde, essa mulher trabalhava bastante e, praticamente, acabara de dar luz a uma menina chamada Jéssica que contava com seus seis meses de vida. Amamentando, Ana dividia as atividades na lavoura cafeeira com a filha que não ficava abandonada pois os trabalhadores do campo têm um hábito de tomar café às nove e às quinze horas e era justo nesses momentos que descia até o barraco para alimentar a filha que ficava com crianças maiores.

Antigamente, as mulheres de baixa renda e moradoras da zona rural costumavam ter muitos filhos e quando se encontrava uma mãe contando apenas três ou quatro filhos é porque de alguma forma os primeiros filhos morreram e os que estavam vivos davam graças às vacinas que o governo começava a disponibilizar nas pequenas cidades próximas. As mães só agora estavam se abrindo para os novos tempos. Mas mesmo assim não acreditavam que eram as vacinas contra sarampo, paralisia infantil ou caxumba que estava salvando sua prole, ao contrário, as vacinas de nada serviam e quem estava salvando seus futuros herdeiros era Deus, diziam. Quase todos, lá na roça, já tinham um radinho de pilha em casa e a campanha que os governos faziam para o dia “D” de vacinação chegava a todos os lares. Daí era só pedir ao gerente da fazenda para ir vacinar as crianças e aproveitar para dar um passeio na cidade; coisa rara e prazerosa para gentes simples. E a vida continuava, agora, com menos mortandade infantil.

As crianças que viram dona Ana naquele tempo; se a virem hoje não a reconhecerão. Ela foi tomada por uma patologia que os parentes próximos não souberam explicar direito e eu quis poupá-los de mais indagações. Parece uma mistura de hanseníase com derrame cerebral: triste. Felizmente o problema não afetou sua memória e ela é capaz de narrar durante horas histórias daqueles “velhos e bons tempos” que morou na roça. As lágrimas que brotam dos olhos são lembranças dos banhos que tomou com roupa e tudo nas águas cristalinas da bica; “Ah, eu era nova naquele tempo!”; a trouxa de roupa que levava na cabeça apoiada em uma rodilha para lavar nas manhãs de domingo era o pagamento pelos dias trabalhados de sol a sol pois o dinheiro que ela, o marido e os filhos mais velhos ganharam durante a semana ficava uma parte no armazém e outra na feira-livre cuja atividade era ainda incipiente. De lá vinham panos, linhas e botões que logo viravam vestidos, saias, camisas, bermudas e calças que vestiam todos da casa. E com essa rotina moravam cinco, dez, quinze anos num mesmo lugar; só saiam quando a lavoura enfraquecia ou arrumavam outro local com um ordenado melhor.

Hoje ela está toda trêmula. As mãos escolheram e nem sequer o alimento pode levar a boca. “Fiquei doente assim depois que minha filha morreu com menos de quarenta anos atropelada por um carro no centro de Conquista. O choque foi tão grande que me deixou assim”, ela fala sem se mover numa cadeira que, parece, fizeram especialmente para ela descansar das crises nervosas. Fico sabendo que a filha que morrera há cinco anos não foi Jéssica que cuida da mãe e serve a parentes e amigos que quase sempre visitam a casa; Ana se refere a uma de suas filhas mais velhas. Um parente que está próximo diz não ter sido o acidente o causador da enfermidade porque a filha de Ana foi vítima do trânsito justamente quando a acompanhava ao hospital nos primeiros sintomas da doença.

O fato é que Ana tem apenas 65 anos e aparenta mais de 70. Não se sabe a causa de sua doença e a cada dia que passa A enfraquece mais. O trabalho na lavoura expõe os bóias-frias a uma série de produtos tóxicos lançados para matar pragas e, além disso, há o esforço feito nas entressafras quando as famílias precisam arrancar o mato das roças com enxada e outras ferramentas. Crianças começam na lida diária aos dez ou onze anos; na melhor das hipóteses estudam pela manhã e trabalham à tarde. Perde-se a infância e na maioria dos casos, a vida. Restam apenas histórias para contar o que dona Ana o faz muito bem; tomara que por muitos anos ainda.

Um comentário:

  1. Esse história é real?
    por ai devem existir muitas Anas que lutam para manter e educar os seus filhos nesse país tão desigual!trocaria o título por "Totalmente Ana". :)

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