segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Artimanhas da vida

Cícera Azevedo

Verônica e José são dois jovens que vivem em Buriti, uma cidadezinha às margens do rio Coqueiral. Verônica morava com sua mãe Albina em uma casa muito humilde, ela era moça simples e honesta. José mora com sua mãe Isabel e suas duas irmãs, Cintia e Cristal, também de família humilde, só que diferente de Verônica, José era ambicioso.
Albina trabalhava em casa de família e com o pouco que ganhava conseguia dar uma vida de sacrifício, mas digna a sua filha. Elas nunca podiam comprar roupas e o que vestiam eram doações de seu patrão, a alimentação era o necessário para sobreviverem, lazer fora de casa não existia, o máximo era um passeio em uma praça próximo de casa. Verônica era filha única e não conhecia seu pai, quando perguntava sobre sua existência a mãe desconversava. Albina há anos que não tinha notícias de seus familiares. A casa que elas moravam era de aluguel e estava localizada na periferia de Buriti, as condições mínimas de moradias como saneamento, água, luz e limpeza eram precárias. Verônica estudava em um colégio municipal que ficava no bairro vizinho, ela acordava cedo e se arrumava, ás vezes tomava café, e andava cerca de uma hora até o colégio, uma vida nada fácil para uma adolescente.
José e suas irmãs também foram criados em um ambiente humilde. Dona Isabel era uma mulher batalhadora, pois quando José, que é o mais velho, tinha seis anos de idade seu esposo Francisco faleceu de ataque cardíaco. Ela teve que sustentar os três filhos sem a ajuda de ninguém. Ela também trabalhava em casa alheias, suas filhas aprenderam a fazer bordados e lavar roupas para ajudar na renda de casa, já José vivia em um mundo que não lhe pertencia, usava terno e freqüentava lugares que não cabia sua condição social, tudo custeado pelo trabalho da mãe e das irmãs e pelos trocados que recebia no jogo de cartas. José tinha vergonha de contar as pessoas onde mora e o que sua família fazia. Ele sonhava em encontrar uma moça rica que pudesse lhe dar uma boa vida.
Verônica era uma moça lindíssima, muito bem educada e refinada, apesar de ter estudado em escola pública, mas as escolas públicas eram de boa qualidade na época dos estudos de Verônica. Ela e José moravam próximos e ele sempre a cortejava, até quando certo dia ele teve coragem de ir até a casa dela para conversarem. Começaram a namorar, sempre vigiados por Dona Albina, mas Verônica nunca sabia direito o que José fazia, já que as respostas eram escorregadias para disfarçar suas reais atividades. Mas esse namoro não demorou muito, pois sem motivo algum aparente José não apareceu mais na casa de Verônica.
As coisas iam como sempre na casa de Dona Albina, apesar de algumas vezes ela não se sentir bem de saúde, sentia tonturas, dores no peito e não comentava nada com a filha, mantinha sua rotina no trabalho, já que não podia se dar o luxo de ficar em casa descansando. Esses problemas iam se acumulando até quando pode. Verônica estava retornando da escola quando foi informada por uma vizinha que sua mãe tinha passado mal e não resistiu às fortes dores no peito. Verônica ficou desconsolada e sozinha, já que não tinha nenhum parente que ela conhecia.
Depois da morte de sua mãe Verônica foi morar com uma vizinha que lhe ofereceu abrigo e aconchego. Mas aquela história de Dona Albina de não querer falar sobre o pai e os parentes de Verônica tinha um motivo; Dona Albina era de uma família muito rica e ela os abandonou depois que ficou grávida de seu namorado, motivo de seu pai não ter aceitado a gravidez, pois era uma família tradicional e muito rica. Já o namorado de Dona Albina também era rico e fugiu covardemente para a Europa.
Passado esse tempo todo Verônica foi procurada por um oficial de justiça que lhe informou que seus avôs tinham falecido e deixado toda a herança para ela e sua mãe. Ela ficou extremamente feliz e sentida de sua mãe não está mais viva para usufruir de toda essa riqueza.
Verônica ficou bastante conhecida na sociedade de Buriti por sua riqueza e elegância. Nem parecia que ela tinha vindo da periferia. Apesar do passar dos anos Verônica nunca esqueceu José. Das informações vindas dele é que tinha casado com uma jovem rica, mas que o pai dela teria ficado pobre e ele teria se separado dela.
Verônica nunca esqueceu o abandono de José, bem como seu amor por ele. Quando ela descobriu que o motivo da separação deles foi dinheiro, já que José era um homem ambicioso, ela providenciou uma armadilha para atrair José. Seu representante fez uma proposta imperdível a José, ofereceu muito dinheiro em troca de um casamento onde ele só conheceria a noiva no dia do casamento. José nem gaguejou e aceitou a proposta.
No dia do casamento José teve uma surpresa quando descobriu que sua futura esposa se tratava de sua antiga namorada que ele tinha abandonado sem dar explicações. José não entendia porque Verônica tinha lhe escolhido e porque ela estava tão rica.
Nos primeiros anos de casamento não foi nada fácil para José, pois era tratado por Verônica como mais um empregado da mansão. Não demorou muito e eles se separaram, José voltou a morar com sua mãe e irmãs. Já Verônica casou de novo e teve filhos lindos com o seu novo amor.
Essa estória serve para demonstrar as pessoas ambiciosas que a vida dar voltas. Se hoje a vida nos oferece dificuldades, ela também poderá, em outro momento, oferecer bonança e felicidade.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

SIMPLESMENTE ANA

Isaac Gregorio

Conheci Ana nos idos de 1985 quando ela era uma jovem senhora de pouco mais de quarenta anos na zona rural de Barra do Choça. Forte, bonita e esbanjando saúde, essa mulher trabalhava bastante e, praticamente, acabara de dar luz a uma menina chamada Jéssica que contava com seus seis meses de vida. Amamentando, Ana dividia as atividades na lavoura cafeeira com a filha que não ficava abandonada pois os trabalhadores do campo têm um hábito de tomar café às nove e às quinze horas e era justo nesses momentos que descia até o barraco para alimentar a filha que ficava com crianças maiores.

Antigamente, as mulheres de baixa renda e moradoras da zona rural costumavam ter muitos filhos e quando se encontrava uma mãe contando apenas três ou quatro filhos é porque de alguma forma os primeiros filhos morreram e os que estavam vivos davam graças às vacinas que o governo começava a disponibilizar nas pequenas cidades próximas. As mães só agora estavam se abrindo para os novos tempos. Mas mesmo assim não acreditavam que eram as vacinas contra sarampo, paralisia infantil ou caxumba que estava salvando sua prole, ao contrário, as vacinas de nada serviam e quem estava salvando seus futuros herdeiros era Deus, diziam. Quase todos, lá na roça, já tinham um radinho de pilha em casa e a campanha que os governos faziam para o dia “D” de vacinação chegava a todos os lares. Daí era só pedir ao gerente da fazenda para ir vacinar as crianças e aproveitar para dar um passeio na cidade; coisa rara e prazerosa para gentes simples. E a vida continuava, agora, com menos mortandade infantil.

As crianças que viram dona Ana naquele tempo; se a virem hoje não a reconhecerão. Ela foi tomada por uma patologia que os parentes próximos não souberam explicar direito e eu quis poupá-los de mais indagações. Parece uma mistura de hanseníase com derrame cerebral: triste. Felizmente o problema não afetou sua memória e ela é capaz de narrar durante horas histórias daqueles “velhos e bons tempos” que morou na roça. As lágrimas que brotam dos olhos são lembranças dos banhos que tomou com roupa e tudo nas águas cristalinas da bica; “Ah, eu era nova naquele tempo!”; a trouxa de roupa que levava na cabeça apoiada em uma rodilha para lavar nas manhãs de domingo era o pagamento pelos dias trabalhados de sol a sol pois o dinheiro que ela, o marido e os filhos mais velhos ganharam durante a semana ficava uma parte no armazém e outra na feira-livre cuja atividade era ainda incipiente. De lá vinham panos, linhas e botões que logo viravam vestidos, saias, camisas, bermudas e calças que vestiam todos da casa. E com essa rotina moravam cinco, dez, quinze anos num mesmo lugar; só saiam quando a lavoura enfraquecia ou arrumavam outro local com um ordenado melhor.

Hoje ela está toda trêmula. As mãos escolheram e nem sequer o alimento pode levar a boca. “Fiquei doente assim depois que minha filha morreu com menos de quarenta anos atropelada por um carro no centro de Conquista. O choque foi tão grande que me deixou assim”, ela fala sem se mover numa cadeira que, parece, fizeram especialmente para ela descansar das crises nervosas. Fico sabendo que a filha que morrera há cinco anos não foi Jéssica que cuida da mãe e serve a parentes e amigos que quase sempre visitam a casa; Ana se refere a uma de suas filhas mais velhas. Um parente que está próximo diz não ter sido o acidente o causador da enfermidade porque a filha de Ana foi vítima do trânsito justamente quando a acompanhava ao hospital nos primeiros sintomas da doença.

O fato é que Ana tem apenas 65 anos e aparenta mais de 70. Não se sabe a causa de sua doença e a cada dia que passa A enfraquece mais. O trabalho na lavoura expõe os bóias-frias a uma série de produtos tóxicos lançados para matar pragas e, além disso, há o esforço feito nas entressafras quando as famílias precisam arrancar o mato das roças com enxada e outras ferramentas. Crianças começam na lida diária aos dez ou onze anos; na melhor das hipóteses estudam pela manhã e trabalham à tarde. Perde-se a infância e na maioria dos casos, a vida. Restam apenas histórias para contar o que dona Ana o faz muito bem; tomara que por muitos anos ainda.